Ventre

 Seria mentira se eu dissesse que só tenho memórias difusas daquele tempo. Tem certas coisas que a gente lembra sem o menor esforço, e com a mesma nitidez com que os olhos abertos fazem seu julgamento instantâneo sobre a rua movimentada do outro lado do vidro. É como se as coisas se lembrassem de nós, e não o contrário, e decidissem nos visitar, bater na porta da frente e ir entrando, sem muita cerimônia. Talvez eu não lembre de tudo, porque seria um filme interminável, e no fundo é por isso que a nossa memoria é como a fotografia e não como o cinema. Seria insuportável assistir  a si mesmo em tempo real. Eu, pelo menos, não aguentaria. Daquele tempo eu lembro tão bem que quase chega a ser um desses filmes antigos em que a sucessão de quadros ainda era visível. Muitas vezes me pego lembrando desses relances e sinto medo. Ou vergonha. Na verdade, tudo junto. Porque os sentimentos não existem assim, em estado ideal, na pureza divina que a gente atribui a eles, existe medo-vergonha-saudade-tristezaciúmes-tudo-junto e a gente separa em palavras pra tentar se explicar. 

No tempo do cinema mudo a gente constituía a história do filme sobre fragmentos de imagem e texto. O cinema progrediu, a memória humana não, e essa é a nossa sorte. Aqui dentro dessa massa elétrica e sanguinolenta do cérebro, o cinema ainda é mudo e fragmentário. Mas seria novamente mentira dizer que todas as lembranças são fotografias do mesmo tipo. As fotografias de tempos eufóricos surgem diante dos meus olhos como saídas de uma polaroid, ainda úmidas, tinta de lembrança fresca. Mas também guardo retratos em sépia dos anos de colégio, e fotos em preto e branco da minha infância que de tão apagadas já não me permitem diferenciar se o bebê sou eu ou meu irmão lendo um gibi pela primeira vez, e se o rosto que volta e meia surge no fundo dos olhos com um sorriso triste é meu ou da minha mãe. À medida em que o tempo passa, não sei o que é memória e o que é consolo, nem o que inventei que era sonho e, na verdade, era outra vida antes de saber soletrar me nome com orgulho. 

O tempo não é o único responsável por esse apagamento, até acho que é o menos culpado. Sinto que a memória tem suas razões específicas pra escolher umas fotos entre outras, e nas preferidas ela passa um verniz feito de pontos de interrogação, de modo que a gente lembra para sempre daquilo que ficou sem resposta. Desses paradoxos do-nascer-viver-morrer o que mais me intriga é isso: que a gente lembre com mais clareza daquilo que mais nos confunde. Sâo as perguntas que martelam na memória, que insistem em nos cobrar uma solução. Que imprimem cópias e cópias de imagens que nos maltratam por que não podemos resolver de trás pra frente. As respostas a gente aceita com mais facilidade e esquece, ou guarda, num lugar que não é bem lembrança e é quase estômago. 

Essa é a primeira imagem que tenho daquele dia, despertar com a mão no ventre, como quem sente alguma falta ou excesso de falta, e uma necessidade urgente de conforto. Depois o cinza metálico espreitando em maçanetas, pias, estetoscópios. E um cheiro-gosto morno de sopa de legumes, e uma pessoa cochilando sobre o pescoço pré-torcicolo na cadeira ao lado da minha cama. Depois que eu melhorei me contaram o que tinha acontecido, mas essas palavras emprestadas não terminam de caber no formato da minha memória. É como se falassem de mim em terceira pessoa, enquanto estou ausente. E fico amarrada a essa incerteza como num filme que não tem final. Tentando entender o que querem dizer sem dizer, o que eu deveria saber e sentir que me foi tirado. Às vezes ainda acordo na mesma posição, com as mãos no ventre e um cheiro de sopa morna que deixa tudo artificalmente confortável. Sei que esperam de mim alguma resposta. Mas antes vem uma pergunta que ainda não teve coragem de nascer. 

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